03/02/2017
Boa tarde meu povo que aqui estão Dá licença pra este menestrel Faço vênia tirando o meu chapéu Pr'essa gente que tem bom coração Para mim é uma grande emoção Cantar versos na mesa de palestra Vou tentar não fazer rima canhestra E deixar a plateia bem contente Ve-se logo que são inteligentes E não querem que o bardo estrague a festa
Toda vida vivi em desatino Mas na rua encontrei a minha musa Que bordou de dourado minha blusa E mudou para sempre meu destino Só arrisco no canto nordestino Por que em jongo na roda sou formado E topar com meu ponto é arriscado Minha escola tem sido a ingoma Na fogueira tirei o meu diploma Goromenta comigo é embaçado
Vou saudar nesta hora a minha amiga Que organiza este evento tão bacana Alma nobre, a Glaucia sempre chama Todo povo na roda da cantiga Todo ano reúne e dá liga Pra um mundo de gente original No caminho do sopro ancestral Que anima o corpo em movimento Deus que traga saúde e muito alento Longa vida a projeto tão vital
Vou também dar um oi para o colega E irmão não no sangue mais na arte Juliano é seu nome, e em toda parte Ele anda co'o povo e não sossega É guerreiro de Jorge, e o bicho pega Quando põe o Brasil no seu terreiro Ensinando pra este mundo inteiro O valor da cultura popular Esse cabra é danado pra mostrar As belezas do povo brasileiro
Doutro lado, a Péo, é grande mestra Que desvenda a fala brasileira Em folias e cantos, brincadeiras Nas cidades, nos campos e florestas Nessa linda cultura que é da festa Ela busca sentidos com carinho Nos convida a todos pro caminho A trilharmos o chão do aprendizado Todo ser já floresce informado Do chamego da rosa e o do espinho
Também vou saravar o sanfoneiro Gente grande e nobre criatura Gabriel, o arcanjo da cultura Tem na alma o canto brasileiro Co'a sanfona virou o mundo inteiro Foi tocar na Bahia e na Guiné Não conheço lugar que não pôs pé Ele foi pra tocar até na China Quase lá fica por uma menina Mas bateu a saudade aqui do mé
Vou falar é do povo brasileiro Marca forte de várias etnias Com encontros de paz e rebeldia Molda o ano janeiro a janeiro Pé de dança, fulô, água de cheiro Tudo em festas, cortejos encantados Tudo em casas e ruas ubicados Para mór de dar loa ao sacramento União desse povo, sentimento Integrando a Vida ao Sagrado
Os Cristãos e os Mouros em batalhas Marinheiros da Nau Catarineta Cantadores jongueiros e retretas Foliões, batuqueiros e mortalhas Baianás e congueiros de toalha Mina jeje nagô linha da mata Moçambique de nego de precata É Nação Africana, é Irmandade Cada um compartilha uma verdade Que chegou por avós de longa data
Nesta casa que estamos reunindo Sinto o vento das forças ancestrais Os pilares ternários colossais E a penunbra instaurando um sono lindo É na rede que o sonho mais bonito Ilumina a alma do xamã Intepreta o hoje e o amanhã Os indígenas são nossos avós Neste templo ressoa a sua voz Pra guiar todos nós em seu elan
Foi o pai de Anuyá quem fez aqui Essa obra de bela arquitetura Lumiar expoente da cultura Vem do povo dos Yawalapití Vejo aqui nessa roda os Guarani Tem também Kayapó Mebengokré Gente sábia e feliz com o axé Nós ficamos marcado co'a sua tinta Bem bonitos pra toda roda vinda Espalhar alegria a quem quiser Construção tradição parece pura Por seu sólido e firme assentamento Nos quedamos surpresos um momento Mas por fim encontramos a tintura O espaço agora é transcultura A palestra é dentro aqui da oca A palavra que canta e que toca Que aprendemos com nossos ancestrais A seguir com os novos rituais E a pura mistura recoloca
Sincretismo é palavra especial Que existe na língua portuguesa Para uns ela é cheia de beleza Para outros, encarnação do mal O assunto não pode ser banal Muitos são os sentidos da cultura Muitas são as facetas da mistura Sincretismo nasceu foi lá na Grécia Os cretenses unidos, peripécias E a história bagunça a coisa pura
Sincretismo é estarmos todos juntos Cada um portador de uma verdade Cada um vai viver a realidade De acordo com seu estar no mundo Mas as mentes e corpos em conjunto Remodelam o corpo do vivido Incorporam oral e o escrito E as Forças Divinas que atuam Nas diversas Nações que se cultuam Andam juntas por ser bem mais bonito
Sincretismo não é mascaramento Pelo peso do jugo colonial O Divino e Olorum tem peso igual Vou na missa e na gira em movimento Quanto mais for o fortalecimento Que nos traz cada flor desse rincão Mais terá nossa vida direção Para todos se verem irmanados Para quê repisar o separado Misturado é o bom, o puro não!
Porque a realidade dura e bela Se constrói com os povos que convivem E a memória de um grupo em vertigem Incorpora lembranças fora dela E aberta está essa janela Completando as lacunas do esquecido No tear conturbado do vivido Muitos fios se combinam na urdidura Desse modo é tecida a cultura Nosso manto é multicolorido
Mas também neste mundo de meu Deus Desde quando esse mundo começou Se o espaço de uns se encurtou Logo querem quintais que não são seus E se os gregos louvavam o seu Zeus Era Jupiter o deus de quem mandava Os romanos fazendo gente escrava Procuravam a todos dominar Mas as almas não pôde assujeitar Assim Creta ficou sincretizada Desse jeito também 'qui no Brasil Desde o tempo da colonização A Europa foi mais que um vilão Dominando na força e no fusil Tribos índias enfrentam morte vil Mas não deixam de lado a sua herança Sua língua, anseios, esperanças Esse povo renasce com vigor Ele tem que ser nosso professor Para a vida num mundo com bonança
Também negros da África lutaram Contra as malhas cruéis do escravismo E juntaram as forças, comunismo E mais fortes as dores suplantaram Co'alegria seus cantos entoaram Diáspórico mundo construindo Nos desvão do sistema evoluindo Como Porta-Bandeira e Mestre-Sala Na avenida que é campo de batalha Com rajadas de ritmos retinindo
Desse jeito a ideologia Seleciona o puro na mistura Reconstrói a herança da cultura Com orgulho do Ser e a nostalgia De uma origem que vaza o dia-a-dia Conquistando convívio cidadão Transformando o ferro em canção E a injustiça em motor de mudança E aqui essa coisa que já dança É esperança de nossa união!
** Paulo Dias é pianista, percussionista e etnomusicólogo - UNICAMP/SP, fundador e diretor da Associação Cultural Cachuera