O sucesso é altamente valorizado na sociedade contemporânea. Progresso, crescimento e performance são substantivos perseguidos pela maioria das pessoas em busca de êxito, realização e felicidade. Mas há um preço que muitas vezes é pago nas moedas da pressa, do estresse e da sobrecarga. Então, como alcançar todos esses desejos de forma mais suave e harmônica? Para mim, que sou um cacique da etnia Guarani, pai de 6 filhos, avô de 20 netos e que vive em uma aldeia em Bertioga, na Região Metropolitana da Baixada Santista, a resposta está no equilíbrio.O conceito de tempo tal qual o homem branco conhece é relativamente novo para muitas comunidades indígenas. No meu grupo, a ideia foi introduzida há 23 anos, quando chegaram a escola e a energia elétrica à aldeia. Até então, os indígenas locais "contavam" a passagem do tempo por meio das fases da lua, pelo canto dos pássaros, pelo alvorecer e pelo crepúsculo e a partir das orientações do pajé. Antigamente não tínhamos relógio ou rádio, vivíamos só na floresta. Não havia preocupação com horário, tínhamos as tarefas do dia, o plano de atividade. De dia era pescar, coletar frutas, caçar. Recebíamos a orientação do pajé de quando era bom trabalhar e de quando era bom ficarmos em família, sem sair da aldeia. A noite era para se recolher, descansar ou rezar. A gente sabia que era hora de acordar quando ouvia o terceiro canto dos pássaros após a meia-noite. Comíamos quando tínhamos vontade. Com a chegada da escola veio a obrigação com o horário. E mudou muito as coisas na aldeia. Eu não fico muito preocupado com o tempo quando estou em casa, mas quando temos reunião ou saímos para trabalhar ou estudar temos que medir.
Mente livre
Na condição do homem branco de ficar quase todo o tempo preso à rotina, ao celular e medindo a que horas dorme e acorda, a mente não fica livre, a mente fica com grande interferência. Quando se está muito apressado é porque espiritualmente não se está bem. E isso nos leva ao nervosismo e à agressão. Eu, que assim como os demais integrantes da aldeia precisei aprender a língua portuguesa para me comunicar, sobretudo quando havia algum conflito de entendimento, entendo que se deixar levar pelo ócio, pela observação e, sobretudo, pelo amor da família e dos entes queridos, é fundamental para uma vida mais fluída.
Importante é saber viver em harmonia, ter saúde de vida e corporal. A família para nós é muito importante. Estar juntos dos filhos, ver a mãe doar carinho e amor aos seus meninos... Felicidade é comer a fruta que você gosta, ter um cardápio variado. A gente fala muito em espiritualidade e o nosso espírito não pode estar doente. Comer comida muito salgada, muito doce, usar álcool ou fumar também traz doença espiritual. É bom deixar de lado.
Meio cidade, meio florestaEscola, trabalho, renda fixa, luz elétrica, televisão, celular... Apesar de todos esses compromissos e pequenos confortos já serem parte da vida e da rotina dos Guarani de Bertioga, as tradições, costumes e hábitos milenares estão longe de serem apagados ou substituídos. É nesta constante mescla entre presente e passado, nesses momentos de conexão com o instintivo, é que mora a harmonia. As crianças vão à escola, fazem as lições, vão ao médico, veem TV. Mas elas andam pela aldeia, pela floresta, vão à cachoeira, colhem, brincam livres e descalças, sobem nas árvores... As meninas aprendem as atividades locais com suas mães e os meninos, com os seus pais. Eles estão sendo educados para amar, cuidar e proteger suas famílias. Quando um homem e uma mulher se casam, eles ficam um tempo na casa da sogra e do sogro para aprender. Homens e mulheres fazem coisas de suas responsabilidades. Tem o resguardo da mulher, que pode durar duas luas. Essa mulher não pode cozinhar ou fazer outras atividades. Nesse período é o homem quem faz. É para isso que serve o casamento, para se cuidarem. Se não for assim, algum lado fica sobrecarregado, daí vem o estresse, a doença. Coletivo ou individual?
No rastro da ideia de tempo e de pressa, o individualismo também ganhou espaço. A melhor percepção do que deve ser público ou privado, ou acessado de acordo com os limites estabelecidos por cada um, pode ser considerado um ganho. Mas até que ponto deveríamos, de fato, manter quase tudo na esfera do individual? E mais, em que medida isso briga com a nossa natureza?
Aqui na comunidade, quando acontece alguma denúncia ou algum desentendimento as pessoas vêm até mim. Acontecem brigas, é claro. Mas a gente apura os motivos e as pessoas envolvidas são orientadas a terem um comportamento mais pacífico para resolver a situação. E para isso, claro, eu preciso dar o exemplo. Preciso estar equilibrado. Nosso povo vem do massacre, então, temos que nos entender, nos apoiar e fortalecer. Cada aldeia tem sua condição de sobreviver. Tem aldeia que tem controle geral, cada região tem a sua particularidade. Aqui, o trabalho é em prol da igualdade, da coletividade. E isso faz parte do equilíbrio que nos mantém de pé.
Adolfo Timóteo é cacique da Aldeia Guarani Mbyá, Bertioga/SP. Uma versão desse artigo foi publicado na coluna A Tal Felicidade, da revista Veja. S. Paulo. Leia abaixo.