01/10/2008
Gostaria de iniciar nossa conversa com a evocação de uma imagem. Rousseau acreditava ser a metáfora a origem da linguagem; Vico exaltava a metáfora poética, o mito em pequeno ( Arrigucci Jr, 2002, p.80), como fundante do homem; Novalis afirmava que, quanto mais poético mais verdadeiro ( 2002, p.95 ) e Hillman defende a tese de que as imagens são a linguagem inata, que fornece a base poética da mente: A vida se mostra como imagem antes mesmo de haver uma história de vida, escreve ele em O Código de Ser (p.47).
A imagem que evoco é a do amanhecer, sua luminosidade nascente, a tessitura dos sons, o rumor ainda indiferenciado das coisas, a quase fala de todos os seres vivos, a afinação dos instrumentos da existência. Peço a vocês que guardem essa imagem; voltarei a ela no fim da minha exposição.
E já que estamos falando do amanhecer, lembro-me de Max Muller, o criador da mitologia comparada, para quem a elaboração dos mitos é orientada pelos fenômenos solares, as epifanias do sol. A passagem da sombra à luz – se quisermos, a metáfora da construção da consciência – é o grande tema, o ur mito, o poema primordial.
O surgimento da luz é belo por si só, é uma manifestação da beleza. Para Hillman, perceber o belo é perceber o mundo. Afrodite, a anima mundi, produz o mundo visível: o das imagens. Ela é a alma de cada um de nós que, gerando figuras, realiza a complexa urdidura do imaginário humano. Para Hillman a alma nasce na beleza, se alimenta de beleza e requer beleza para sua vida ( em The Thought of the Heart, p.p.24, 25.)
Schiller também viu a alma do universo quando escreveu A Educação Estética do Homem. A educação, assim entendida, é uma pedagogia da anima, da psique, da beleza.
É então que me vem a pergunta: existiria alguma afinidade entre Schiller e os educadores contemporâneos, no que diz respeito à beleza como elemento constituidor dos seres humanos, como fator de aprimoramento e eticidade da espécie ? Respondo com a citação de quatro pequenos poemas:
Boniteza é Construir o conhecimento na escola. É aprender ensinar o aluno. É ter ética, respeito, amor. É ter educação de dentro do coração. Bruno Rocha. Ciclo I do Ensino Fundamental
Boniteza não é a pessoa Se arrumar bem bonita. Boniteza é arrumar amigos. É aprender cada vez mais. Boniteza é também felicidade. E esperança de viver. Jessica Cristina. 2 ano do Ciclo I do Ensino Fundamental.
Com a boniteza se aprende A ensinar certo. É respeito, amar o próximo. Ter ética. É amar a educação. Edson. 4 ano do Ciclo I do Ensino Fundamental.
Boniteza é poder Ler o nome das coisas E todos os livros. Jessica Fiel. 2 ano do Ciclo I do Ensino Fundamental
Estes poemas fazem parte do livro Poetizando Paulo Freire, escrito e ilustrado por alunos da Rede Municipal de Ensino de São Paulo, sob a organização da Prof. Olgair Gomes Garcia.
“Boniteza” é um termo brasileiríssimo, tão caro a Paulo Freire, quiçá uma palavra geradora de suas próprias idéias pedagógicas, na sua convicção da interação necessária entre leitura do mundo- esse mundo perceptível, domínio de Afrodite – e a leitura da palavra.
Curiosamente, como Schiller, que expôs suas idéias por meio de cartas, o autor de A Educação como Prática da Liberdade, preferiu, algumas vezes, escrever seus ensaios em forma de cartas. A partir da Carta XXI até a XXVII, Schiller adotará a beleza como forma tranquila que eleva a especial conquista da reforma psico-ética da humanidade ( O Fragmento e a Sintese. A Estética Objetiva de Schiller, em A Educação Estética do Homem, tese de doutorado de Jorge Anthonio da Silva, PUCSP. 2000., p.245).
No trabalho, Esboço sobre Ética e Complexidade, Ewerson de Souza, Fabiano Torres e Joy Barros, alunos da graduação do Curso de Filosofia da USP, atribuem à educação o papel de fazer o homem ver a imensa beleza de sua insignificante e passageira vida. E compreendendo a importância de sua vida, não entenderia a beleza da vida mesma? - concluem os jovens filósofos. Neste momento da minha fala, em que me preparo para expor algumas questões pontuais sobre valores e práticas na universidade, chamo a atenção para o fato de que, as considerações que teci até agora, buscam integrar o campo dos valores ao campo das práticas, pois os valores estão embebidos e são inseparáveis das práticas.
Uma outra questão a ser pensada é a organicidade pedagógica, que vai do ensino fundamental ao pós-graduação, numa trajetória que concebe como valor, a formação e não o adestramento. Por isso escolhi tecer junto com meu texto os poemas das crianças do ensino fundamental, um trecho de um trabalho de alunos da graduação e a tese de doutorado de Jorge Anthonio, que me inspirou o enlace entre a beleza schilleriana e boniteza freiriana..
Acrescento a essas reflexões, o valor docência, vendo-o como a arte de ensinar e o prazer de pensar, expressões que empresto de Marilena Chaui, no livro Escritos sobre a Universidade ( Ed.UNESP, 2001, p.63 ).
Isso posto, vou às tais questões pontuais, que tratam da complexidade, da interdisciplinaridade, da transdisciplinaridade e da arte, o território específico das imagens na trama das realizações humanas.
"[...] é preciso que o corpo docente se coloque nos postos mais avançados do perigo que constitui a incerteza permanente do mundo"
(de um filósofo anônimo, citado por Edgar Morin)
Para Morin, a sobreposição a condições dadas, seja na esfera biológica ou no âmbito da história, prefigura a senilidade e a morte, porque solapa a natureza criativa e inventiva do homem. O filósofo atribui a uma forte pressão sobreadaptativa, a conformação do ensino e da pesquisa às exigências econômicas, técnicas, administrativas, bem como aos últimos métodos e às últimas diretivas do mercado. Esses fatores levam não só a uma redução do ensino geral, mas também a uma marginalização da cultura humanista.
O alto grau de desenvolvimento, que caracteriza nosso século e nossa era planetária, conduz, inevitavelmente, a um enfrentamento da complexidade, conceito central para Morin e que significa, essencialmente, “o que está tecido junto “.
Com base nisso sua proposta é, sobretudo, uma proposta de rejunção, frente à disjunção de origem cartesiana. À separação, seja dos objetos do contexto ou das disciplinas umas das outras, numa compartimentalização e fragmentação, Morin responde com a ligação, isto é, a substituição de um pensamento que está separado por um que está ligado (2000, p.13 ). Em vez de uma causalidade unilinear, uniderecional, a emergência de uma causalidade circular, multireferencial. Em lugar da rigidez lógica, uma dialógica, que aceita noções simultaneamente complementares e antagônicas. A integração parte- todo deve-se completar com o reconhecimento do todo no interior das partes. A isso Morin denomina reforma do pensamento e esclarece:
Trata-se de uma reforma não programática mas paradigmática, que conhece a nossa aptidão para organizar o conhecimento. A reforma necessária do pensamento, é aquela que gera um pensamento do contexto e do complexo. O pensamento contextual busca sempre a relação de inseparabilidade e inter- retroação entre todo fenômeno e seu contexto e de todo contexto com o contexto planetário. O complexo requer um pensamento que capte as relações, inter-relações e implicações mútuas, os fenômenos multidimensionais, as realidades que são simultaneamente solidárias e conflitivas, ( um pensamento ) que respeite a diversidade, ao mesmo tempo que a unidade, um pensamento organizado, que concebe a relação recíproca de todas as partes (2000, p.14).
Essa reforma do pensamento responde a uma necessidade social básica: a formação de indivíduos aptos a enfrentar os problemas de seu tempo.
Para Morin, a missão primordial do ensino implica muito mais a aprender a religar do que aprender a separar, o que foi feito até o presente. E completa : É preciso ao mesmo tempo aprender a problematizar. ( 2000, p.14 ).
Já que o homem é um ser bio-psico-social-cultural, Morin sugere religar as questões sob essa perspectiva.A partir daí é possível acessar as disciplinas, resguardando nelas o traço humano e, desse modo, chegar à unidade complexa do homem
Questões como a interdisciplinaridade e a transdisciplinaridade são inseparáveis da reforma do pensamento. Diz ele :A transdisciplinaridade só representa uma solução quando se liga a uma reforma do pensamento.(2000, p.13 ).
Considerando que o desenvolvimento da ciência ocidental, desde o século XVII, não foi apenas um desenvolvimento disciplinar mas também transdisciplinar, Morin chama a atenção não só para as grandes unificações transdisciplinares, mas também para os imperialismos teóricos, mostrando os dois lados da questão: o da abertura e o do fechamento, no trato com as disciplinas.
A interdisciplinaridade e a transdisciplinaridade, como respostas para a universidade, hoje, não exclui a visão crítica sobre elas. Deve-se ficar atento às armadilhas, como a adoção do geral pelo geral e do específico pelo específico, que conduziria a uma perda da universalidade. A dimensão do homem, na sua unidade complexa, jamais deve ser perdida.
Isso nos leva a concluir, que a prática da inter e da transdisciplinaridade, envolve os que nela estão empenhados, num verdadeiro exercício de alteridade, num constante olhar para o outro, reconhecendo-se nele e deixando-se transformar por ele.
No livro O Método, Morin coloca em “comunicação pedagógica”, esferas disciplinares até então não comunicantes. A comunicação entre as ciências, leva-o a pensar na formação de um campo .que ele denomina “Ciências do Imaginário”, onde as artes estão presentes. Elas têm um papel importante no pensamento da complexidade porque, juntamente com outras disciplinas, como a história e a filosofia, são fundamentos do que ele chama “cultura das humanidades” ( e que, pensando em Hillman, poderíamos denominar “cultura da alma “ ou “cultura profunda “ ).A arte tem aptidão para abertura e para contextualização, bem como favorece a reflexão sobre o saber, integrando-o à vida humana, ao autoconhecimento e à atuação do indivíduo no mundo.
Voltando à afirmação de Novalis de que, quanto mais poético mais verdadeiro, tentamos a tradução poética do pensamento complexo de Morin, do tecido das disciplinas e, por que não, da arte da docência. Eis a imagem:
Um galo sozinho não tece uma manhã:ele precisará sempre de outros galos. De um que apanhe esse grito que ele e o lance a outro; de um outro galo que apanhe um grito que um galo antes e o lance a outro; e de outros galos que com muitos outros galos se cruzem os fios de sol de seus gritos de galo, para que a manhã , desde uma teia tênue , se vá tecendo entre todos os galos. E se encorpando em tela, entre todos, se erguendo tenda, onde entrem todos, se entretendendo para todos, no toldo ( a manhã ) que plana livre de armação. A manhã, toldo de um tecido tão aéreo que, tecido, se eleva por si só: luz balão João Cabral de Melo Neto, Tecendo a manhã , em Poesias Completas, José Olympio Editora, Rio, 1975, p.p19, 21.
Referências Bibliográficas:
Arrigucci Jr., Davi, Coração Partido, Cosac & Naify, S. Paulo, 2002
Hillman, James, The Thought of the Heart, Spring Publications, Inc., Dallas, Texas, 1981
O Código do Ser, Objetiva, S.Paulo, 1997
Morin, Edgar, Complexidade e Transdisciplinaridade. A reforma da Universidade e do ensino fundamental. EDUFERN, 2000
Lúcia Fabrini de Almeida é doutora em Comunicação e Semiótica (PUC-SP). Publicou vários livros entre os quais O cabeça de elefante e outras histórias da mitologia indiana (Ed. Cosac & Naify,2002). Professora do curso de Pós Graduação Arte Integrativa.